Cronicas lindas em homenagem a amigo IVAN EVALDO KUSSLER E IVAM KUSSLER
quinta-feira, 5 de agosto de 2010
CRÔNICAS DE FERNANDO SABINO
Ao acordar, disse para a mulher:
— Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a
prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa. Mas acontece que
ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum.
— Explique isso ao homem — ponderou a
mulher.
— Não gosto dessas coisas. Dá um ar de
vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando
ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que
não tem ninguém. Deixa ele bater até cansar — amanhã eu pago.
Pouco depois, tendo despido o pijama,
dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá
dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a
porta de serviço para apanhar o pão. Como estivesse completamente nu, olhou com
cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o
embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito
cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a
porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.
Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e,
depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá
dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio
abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o
nó dos dedos:
— Maria! Abre aí, Maria. Sou eu — chamou, em
voz baixa.
Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá
dentro.
Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do
elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares... Desta vez, era
o homem da televisão!
Não era. Refugiado no lanço da escada entre os
andares, esperou que o elevador passasse, e voltou para a porta de seu
apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão:
— Maria, por favor! Sou eu!
Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu
passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo... Tomado de pânico,
olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia
executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam,
e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo
de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando a subida
de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com
o embrulho do pão.
Mas eis que a porta interna do elevador se
fecha e ele começa a descer.
— Ah, isso é que não! — fez o homem nu,
sobressaltado.
E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do
elevador e daria com ele ali, em pêlo, podia mesmo ser algum vizinho
conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais
longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka,
instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do
Terror!
— Isso é que não — repetiu, furioso.
Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com
força entre os andares, obrigando-o a parar. Respirou fundo, fechando os olhos,
para ter a momentânea ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o botão
do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador. Antes de mais nada:
"Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou descer? Com cautela
desligou a parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o
elevador subir. O elevador subiu.
— Maria! Abre esta porta! — gritava, desta vez
esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás
de si.
Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no
batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do
apartamento vizinho:
— Bom dia, minha senhora — disse ele, confuso.
— Imagine que eu...
A velha, estarrecida, atirou os braços para
cima, soltou um grito:
— Valha-me Deus! O padeiro está nu!
E correu ao telefone para chamar a
radiopatrulha:
— Tem um homem pelado aqui na porta!
Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver
o que se passava:
— É um tarado!
— Olha, que horror!
— Não olha não! Já pra dentro, minha
filha!
Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a
porta para ver o que era. Ele entrou como um foguete e vestiu-se
precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois,
restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.
— Deve ser a polícia — disse ele, ainda
ofegante, indo abrir.
Não era: era o cobrador da televisão.
Esta é uma das crônicas mais famosas do grande
escritor mineiro Fernando Sabino. Extraída do livro de mesmo
nome, Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 65.
2 - A
última crônica
A caminho de casa, entro num botequim Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever.
A perspectiva me assusta. Gostaria de estar
inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do
irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária
algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna
de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do
acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou
num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do
essencial.
Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e
tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: “assim eu
quereria o meu último poema”. Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um
último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba
de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos.
A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se
acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça,
toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa
balançar as perninhas curta ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor.
Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da
família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que
matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o
dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para
trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe
limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a
aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se
afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se
da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do
freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no
pratinho – um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia
triangular.
A negrinha, contida na sua expectativa, olha a
garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente.
Por que não começa a comer? Vejo os três, pai,
mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa
de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa
de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho.
Ninguém mais os observa além de mim.
São três velinhas brancas, minúsculas, que a
mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o
pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha
repousa o queixo e sopra com força, apagando as chamas. I mediatamente põe-se a
bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se
juntam, discretos: “parabéns pra você, parabéns pra você...” Depois a mãe
recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa.
A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas
mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura –
ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao
colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer
intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos
olhos se encontram, ele se perturba, constrangido – vacila, ameaça abaixar a
cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria minha última crônica: que
fosse pura como esse sorriso.
Fernando Sabino. A Companheira de viagem.
Outros links:
Poesia para ivam Kussler Ivan Evaldo Kussler
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